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Provocações sobre currículo de matemática – uma “investigação”
- janeiro 30, 2018
- Postado por: singularidades singularidades
- Categoria: Notícias
Em “Um estudo em vermelho” (2010) de Sir Arthur Conan Doyle, um dos mais célebres contos sobre Sherlock Holmes, Dr. Watson conta sua surpresa ao descobrir que o detetive mais conhecido da história da literatura ocidental desconhecia a teoria copernicana e a composição do sistema solar:
“Que um ser humano civilizado não soubesse que a Terra se movia ao redor do Sol, era para mim um fato tão extraordinário que mal podia compreendê-lo”. (p. 10)
Ao perceber a surpresa de seu amigo, o brilhante detetive observa
“Você parece espantado. Agora que já sei essa informação, farei o possível para esquecê-la.”
“Esquecê-la?”, indaga Dr. Watson incrédulo com o desinteresse de Sherlock Holmes sobre uma informação que lhe parecia vital. O detetive, entretanto, explica:
“Acho que o cérebro do homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de abastecer com a mobília que escolhemos. Um tolo pega todo e qualquer traste velho que encontra pelo caminho, de modo que o conhecimento que poderia lhe ser útil fica de fora por falta de espaço ou, na melhor das hipóteses, acaba misturado com uma porção de outras coisas, que dificultam seu possível emprego”… (p. 11)
Por mais icônica e caricata que seja a postura do detetive, está posto um dos debates sobre o currículo. É claro que em termos bastante diferentes daqueles com os quais lidamos diariamente enquanto educadores, mas, inegavelmente, Sherlock Holmes nos apresenta, talvez até intencionalmente, uma crítica cirúrgica ao currículo e à escola da maneira como muitas vezes os temos compreendido. Como amantes da literatura e bons educadores que somos, todo motivo é um bom pretexto para mergulharmos numa reflexão! Esse tem sido, inclusive, um princípio de trabalho no Instituto Singularidades. Não recusaremos, portanto, o convite do detetive para “investigar” um pouco o currículo.
Primeiro, cumpre-nos observar que Holmes nos induz a uma reflexão característica da construção dos currículos escolares na atualidade por meio das questões “para que” e “o que” ensinar. Essa reflexão, sobretudo da maneira apresentada pelo detetive, lembra-nos muito do modo como os contemporâneos do autor debatiam o “currículo”. Bertrand Russell (1872-1970), um dos mais proeminentes matemáticos e filósofos de nossa história, contemporâneo do criador do detetive, ao contribuir com essa temática nos aproxima muito da provocação de Holmes.
Em um de seus livros sobre educação, escrito em 1956, Russell apresenta algumas preocupações suas:
“Deve a educação, o mais cedo possível, converter-se em instrução técnica para algum comércio ou profissão? Devem as crianças ser ensinadas a enunciar corretamente e a ter boas maneiras, ou isso não passa de relíquia aristocrática? É a apreciação da arte coisa de valor para os não-artistas? Deve a soletração ser fonética?” (p. 17)
Esse debate sobre o que deve estar presente no currículo, intimamente associado às finalidades da própria educação, ainda é muito expressivo e atinge em cheio a matemática! Afinal, como professores de matemática, não há pergunta mais direcionada a nós todos do que as tradicionais “Para que serve isso?” e “Onde e quando vou usar isso?”. Não podendo escapar delas, só nos resta encará-las, dedicarmo-nos a responde-las!
Russell, que citamos, nos apresentou uma teoria que ajuda, em alguma medida, a mergulhar nessa reflexão! Primeiro, ele dizia que:
“Não podemos dizer que uma atividade útil é a que produz resultados úteis. A essência do ‘útil’ está em produzir resultados que não são meramente úteis. Às vezes, uma longa cadeia de resultados se torna necessária, antes que o resultado final possa ser classificado de ‘bom’.” (p. 18)
Ok! Conseguimos justificar a partir daí a necessidade de ensinarmos alguns conteúdos matemáticos, os instrumentais, em alguma medida, inclusive, propedêuticos. Porém, isso não nos redime de qualquer culpa nem nos remove instantaneamente da problemática. Afinal, o filósofo e matemático mais renomado do século XX também diria que:
“Nalgum ponto precisamos saltar fora das sucessivas utilidades e encontrarmos o gancho em que pendurar a corrente; do contrário, não haverá nenhuma real utilidade nos elos da corrente. Quando o “útil” é definido dessa maneira, não pode haver dúvida sobre se a educação deve ser útil. Naturalmente que deve, porque o processo educativo é um meio para um determinado fim, não um fim em si mesmo”. (p. 18)
E a formação de professores nesse contexto?
Então… Quais são os pontos em que nós, professores de matemática, temos “pendurado a corrente” para dar sentido aos seus elos? Em que momentos o currículo de matemática nos permite isso? Não seremos responsáveis e nem cumpriremos com êxito nosso papel se nossos alunos e nossas alunas concluírem os estudos planejando, como fez Sherlock Holmes, esquecer todos os conhecimentos considerados inúteis.
Dando mais um passo nessa investigação suscitada inusitadamente por Sherlock Holmes e inspirada por Bertrand Russell, diríamos ainda que temos que pensar no caráter social e cultural do que ensinamos – no melhor estilo Paulo Freire destes termos.
Como o próprio Russell diria ainda,
“É útil sabermos que há doze polegadas num pé, ou três pés numa jarda. Mas este conhecimento não possui valor intrínseco; para os que vivem em zonas onde vigora o sistema métrico, é ele de todo inútil.” (p. 20)
É urgente, então, pensar a escola e o conhecimento – e, portanto, o currículo – a partir de seu caráter social e cultural! Precisamos fazer a mesma reflexão apresentada por Russell no parágrafo anterior para cada assunto matemático que consideramos importante trazer para o currículo, mas não só! É preciso conhecer a escola, a comunidade, o bairro, a região… Esse mergulho também é urgente, necessário, mas não é inédito! Temos algumas experiências que tratam disso!
Muitas dessas questões ainda carecem, evidentemente, de um debate mais aprofundado e mais incisivo sobre uma série de outros elementos envolvidos nas discussões que apresentamos, apenas preliminarmente, acima! Precisamos, por isso mesmo, dar alguns passos no sentido de nos apropriarmos do currículo, das pautas e da agenda da política educacional em nossas cidades, estado e país. A formação inicial de professores no Instituto Singularidades tem levado isso em consideração ao ampliar o acesso dos estudantes às disciplinas sobre currículo, avaliação, políticas públicas e análise estatística de indicadores educacionais.
A participação de educadores nesses debates pode ser ainda mais expressiva! E não é à toa que escolhemos a imagem de Sherlock Holmes e de sua narrativa para iniciar essa provocação: precisamos agir inspirados por uma vontade investigadora de compreender as razões que mobilizam as políticas, os desafios que se apresentam às práticas e os modos como a teoria nos orienta em meio a esses cenários. Conjugar tantas pistas, evidências e mesmo alguns mistérios sobre o currículo e seus debates não é tarefa fácil, mas estamos preparados!
Referências
DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. São Paulo: Zahar, 2010.
RUSSELL, Bertrand. Educação e vida perfeita. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.
Julio Valle é Secretário da Educação de Pindamonhangaba e professor do curso de Matemática do Instituto Singularidades. Contato: [email protected]