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Projeto de criação e apropriação do patrimônio urbano: poste
- março 15, 2018
- Postado por: singularidades singularidades
- Categoria: Notícias
Identifico-me com o que disse Cassia Eller em uma entrevista ao ser questionada: “Você prefere praia ou campo?” “Prefiro calçada”.
O primeiro poste nasceu no Morro do Querosene
Tudo começou no bairro do Morro do Querosene, onde eu morava, numa época de copa do mundo, há muitos anos . Eu era nova no bairro e fanática por futebol. Neste espírito de copa, resolvi pintar na rua uma enorme bandeira. Lentamente as crianças da vizinhança foram amigavelmente se aproximando, primeiro observando a meia distância, logo na sequência, já mais próximas, com olhares de curiosidade. Arrisquei um: “oi”, “quer ajudar?” Nem precisei insistir duas vezes, imediatamente foram pegando pincéis, rolinhos e as cores verde e amarelo. Logo passei da categoria de vizinha nova e desconhecida para a pessoa legal que promove atividades diferentes e divertidas, de artes, para as crianças.
Num domingo lindo de sol, apareci na rua, a fim de buscar alguma coisa para fazer, algumas crianças correram em minha direção perguntando: “O que vamos fazer hoje?” Eu olhei para os lados, pensei um pouco… “vamos pintar um poste.” “Um poste???” Espanto geral! Eu mesma, sem me dar conta do que tinha dito, mas sem querer titubear diante daqueles olhinhos que brilhavam com a novidade aventureira, disse simulando uma certeza óbvia: “Sim, vamos pintar um poste!” “Mas como?” Eu disse: “Como?” Pensando que eu teria que ter rápido uma ideia para aquela indagação assombrosa respondi com naturalidade: “Ora, pintando, uai…vamos entrar e ver o que temos de material”. Encontramos no meu atelier um saco com retalhos de chitas, com belas estampas de flores, num jogo de cores vivas e caipiras.
Sentamos no chão e com tesouras nas mãos passamos a retirar as flores das chitas. A imperfeição dos recortes ficou perfeita. Aprendi com as crianças que assim é que realmente deveriam ser cortadas, pois o bonito da chita é justamente o contraste que se obtém das cores das flores com a forte cor contrastante do tecido.
Eu estava arriscando esta técnica, pois nunca tinha feito postes.
Naquela época, não fazíamos um projeto prévio antes da colagem, como fazemos atualmente, começamos a passar a cola branca no verso das flores e fixamos no poste. Apesar do caráter aleatório na composição das flores, havia, evidentemente, uma supervisão minha na ocupação dos espaços. Pensar no formato cilíndrico é considerar que um espectador possa apreciar a arte igualmente de todos os lados, sem privilegiar ou ignorar nenhuma parte. Isso é um detalhe muito importante, pois não estávamos trabalhando em uma superfície bidimensional; para esse entendimento, circulávamos com frequência nossos olhares em torno do poste para verificar a harmonia entre as partes e o todo. Algumas mães também estavam conosco, engajadas e curiosas.
As pessoas que passavam na rua, paravam, elogiavam o trabalho, perguntavam o que estávamos fazendo, o clima era ótimo, ali nasciam amizades, um projeto de cidadania, de ocupação criativa, um projeto político, social, democrático, integrador, inclusivo, sem nenhum tipo de discriminação.
Percebi que o que estávamos fazendo naquele domingo era o que deveria acontecer na educação, projetos que mobilizassem o interesse da criança, que respeitasse o tempo de cada um, sem burocracia, sem cobrança, com liberdade de ir e vir, com ludicidade e criatividade, respeito e verdade. Pensei que as escolas poderiam oferecer um ambiente mais acolhedor, que possibilitasse a integração com o entorno, com a cidade, com os pais, numa convivência harmoniosa entre as crianças de diferentes idades, onde cada uma pudesse contribuir com aquilo que é capaz de fazer naquele momento. Acreditei que isso seria possível, comecei a refletir sobre uma nova escola, onde as atividades propostas realmente fizessem sentido, dialogassem com a vida cotidiana de cada estudante, que as disciplinas conversassem entre si, e a arte pudesse ser a linguagem de expressão mais contundente no currículo escolar, um meio para dar voz aos alunos, aos seus pensamentos, seus desejos, seus conflitos, angústias, suas demandas, em geral.
Tudo aquilo que estávamos vivenciando não era pouco! As escolas não criam contato significativo com a realidade, separam a ação do pensamento, criam o tempo todo rupturas que interrompem o envolvimento das crianças em suas atividades.Toca o sinal, e as crianças são obrigadas a desconectar um botão interno e ligar outro, completamente diferente. Ouvem comandos autoritários que determinam: “criem! Vocês têm 45 minutos para exprimir suas emoções, ideias e sentimentos”, péééééé, “agora façam contas de multiplicar”, péééééé, “agora leiam”, péééé, “exercitem-se!”, péééééé, “falem inglês!”, péééééé, “descrevam a diferença entre monte e montanha!”, péééééé; recreio!!! Correria geral!!!!! Abrem-se as portas das salas e as crianças saem correndo, se esbarrando, se empurrando, aos gritos de professores ou bedéis: “Não pode correr!!!! ”Mas não pode correr nos corredores??? Quanta loucura! E a educação precisa ser desse jeito?
Era evidente o prazer e a paz que mobilizavam todos nós. Criança precisa de desafios, do inédito, da pesquisa, da criação e da imaginação. “A criança precisa manipular o belo!” disse Renata Meirelles.
Depois da colagem das chitas fomos pintar o poste, onde não havia a colagem. Cor é vida, cor dá vida, cor traz um novo sentido, ressignifica, as cores podem ser misturadas, podem ser reinventadas, multiplicadas. O cheiro da cor, sua espessura, textura, a luz que dela emana, o poder de cobrir, de misturar-se, de realçar, de combinar, compor, contrastar, são qualidades encantadoras, que despertam na criança a vontade de manipulá-las, como se estivessem diante de elementos alquímicos, numa experiência importante.
Um trabalho artístico sem que ninguém precisasse ser um bom pintor, um bom “aluno” de artes. Uma obra democrática, onde cada um podia contribuir com a sua expressão, sem certo ou errado, sem julgamentos de qualquer espécie. Qualquer um que passasse na rua, criança, jovem ou pessoas mais velhas, poderia dar sua pincelada, deixar sua marca.
Com a chegada da noite a luz do poste acendeu e nosso trabalho ficou iluminado com muita energia, uma luz que vinha de cima para baixo, e outra que emanava do próprio poste.
Ana Tatit é professora do curso de Pedagogia e da Pós-graduação “A arte de ensinar arte” no Instituto Singularidades. Contato: [email protected]